Ano passado, enquanto passeava pela livraria de um amigo aqui no bairro me deparei com um livro de capa colorida e com título no mínimo, provocativo. Ao menos para uma mulher à favor da desobediência como eu. Depois de uma folheada rápida já decidi levar para casa e para minha surpresa, no lugar de uma leitura simples, o livro passou a se tornar objeto de grifos, anotações e leituras cruzadas. O que me levou à vontade de compartilhar sobre os insights trazidos por ele. E alguns meses depois, com todas as anotações e estudos feitos, compartilho aqui minhas opiniões e informações que considero importantes.
Essa é a primeira resenha desse perfil e começaremos com:
Para começar, Elise Loehnen, a autora começa contando seu relato sobre uma crise de ansiedade em 2019 seguida pela sua busca por ajuda psicológica. Nesse processo, começa a entender sobre a expectativa enraizada em se enquadrar no que conhecemos como padrões sociais. Os tais comportamentos que são esperados por homens e mulheres. Então, ao iniciar sua jornada por autoconhecimento, passa a basear seu processo de cura nos chamados 7 pecados capitais afim de entender como eles são associados em sua maioria a comportamentos ditos incorretos de mulheres.
“Os tipos de comportamento que nos caracterizam como seres humanos são determinados pelo processo de socialização pelo qual passamos, pelo condicionamento cultural no qual somos moldados, pois somos a mais educável de todas as criaturas do planeta. [...] Tudo que nos tornamos. Que conhecemos e que fazemos enquanto seres humanos temos que aprender com outros seres humanos. De fato, a educabilidade é o traço da nossa espécie. E por isso ser humano é estar em perigo, pois podemos facilmente aprender muitas coisas erradas e questionáveis”
(Ashley Montagu, antropólogo, em trecho do livro “O despertar de tudo: Uma nova história da humanidade”, São Paulo, Companhia das Letras, 2022)
A frase apresentada tem tudo a ver com a ideia de Rousseau de que “o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe”. Rousseau acreditava que, no seu estado natural, o ser humano é simples e essencialmente bom, vivendo em equilíbrio com suas necessidades. Mas, quando entra em contato com as estruturas e regras da sociedade, ele acaba sendo moldado por desigualdades, interesses e influências que o desviam dessa segurança
No texto, vemos algo parecido: ele fala que a gente é moldado pela socialização e pela cultura. Nossa capacidade de aprender é incrível e define quem somos como humanos, mas é um risco também. Por quê? Porque, além de aprender coisas boas, podemos absorver ideias e comportamentos questionáveis, ou até mesmo contraditórios.
Essa conexão é clara porque o texto e Rousseau apontam para o mesmo ponto: a sociedade, com todas as suas normas e condicionamentos, é uma faca de duas gumes. Ela pode tanto elevar a nossa humanidade quanto corrompê-la, dependendo do que aprendemos e de como somos moldados. É daí que vem o "perigo" de ser humano que o texto menciona, porque estamos sempre expostos essas influências.
Como a própria Elise diz, “este é um livro sobre as ‘coisas erradas e questionáveis’ que nos ensinaram, como internalizamos essas ideias na forma de crença, como as enraizamos em nossas estruturas sociais e as repassamos às gerações seguintes, perpetuando essa confusa opressão”. Na minha opinião, um ótimo guia para quebra dessas crenças impostas desde o “tempo da carochinha”.
O ponto seguinte trata do fato de que nossa biologia não deveria decretar que um sexo está acima do outro, ao mesmo tempo que o que determina essa crença é a tradição e cultura.
Vamos como exemplo os Minangkabau, um povo com mais de 4 milhões de pessoas que habitam uma território na parte leste de Sumatra, na Indonésia.
Atualmente constituem a maior comunidade matrialinear do mundo. Lá, são as mães que ocupam lugar central, tomando decisões importantes e cuidando da natureza administrando a gestão das florestas e da agricultura. O ponto importante para esse povo originário é o contato direto com a natureza e a intrínseca conexão que se mantém até os dias de hoje, algo que se perde cada vez mais dentro dos sistemas patriarcais.
“As nossas propriedades e heranças vão para as mulheres, já que são transferidas às filhas. Nós as administramos, mas não podemos vendê-las. A terra, para nós, é um bem comum", declarou Nofri Yani, integrante desse povo, o único com essas características em relação aos demais indonésios....”
Aos homens, fica a tarefa de trazer alimento à mesa e também precisam plantar frutos antes de casar e constituírem família.
Documentário sobre essa comunidade, infelizmente só achei vídeos em inglês, mas nada que uma legenda ativada não ajude.
Tá, mas e como a situação começou a degringolar a ponto da desvalorização do feminino passar a ser regra?
Um dos pontos principais que o livro trata é o surgimento do monoteísmo junto com a demonização da imagem da Deusa, associada principalmente à sua conexão com a natureza. A ideia do feminino sendo expressado como forma de se conectar ao Divino passou a ser considerado como uma crença arbitrária à ideia de um Deus Pai Todo Poderoso, aquele que criou o mundo em 6 dias, descansou no sétimo e arrancou a mulher da costela de Adão.
Fica aqui a indicação de “Quando Deus era mulher”, escrito por Merlin Stone publicado pela Editora Goya.
Com a adição da ideia dos sete pecados capitais que a autora trata em capítulos separados e que podem ser lidos sem ordem linear, entendemos que essa lista não se limita apenas aos religiosos, mas que aplica de forma sutil alguns códigos morais.
Para mim, é impossível não pensar no deplorável “Martelo das Feiticeiras”, escrito em 1484 pelo inquisidor Heinrich Kramer que sem o perdão da palavra foi um grande de um desgraç...falaremos mais sobre ele em breve.
Bom, já que estamos aqui, para encerrar essa introdução deixo aqui a curiosidade sobre a criação dos sete pecados capitais.
Evágrio do Ponto, um monge cristão que saiu caminhando pelo deserto acreditava que certos pensamentos e sensações deviam ser renunciados em nome de uma plenitude e encontro maior com o Divino. Eram originalmente oito e a lista se faz com:
Gula
Luxúria
Avareza
Tristeza/melancolia
Ira
Assídia (apatia espiritual)
Orgulho
Vangloria
Como a autora comenta: “A Igreja se esforçou bastante para torná-los motivo de confissão. Os pecados viraram violações que demandavam penitência: qualquer um que se rendesse a eles precisaria expiar a culpa”.
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Até logo,